Cinema e pintura: Murnau e Caravaggio

1. INTRODUÇÃO

Esse trabalho pretende realizar uma distinção entre o conceito de luz no Cinema e na pintura, utilizando como objetos de análise os quadros do pintor italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571- 1610), nos quais empregava a técnica do chiaroscuro[1] e dois dos filmes do cineasta alemão F.W. Murnau (1888- 1931), A Última Gargalhada (Der Letzte Mann), e Fausto (Faust).
Detectar na pintura e no cinema diferentes funções de representação da luz (simbólica e dramática), a partir de uma discussão sobre a natureza de cada um desses meios é o objetivo maior desse trabalho.

2. CINEMA E PINTURA: LUZ E COR
Se quisermos analisar, em paralelo, ou até mesmo comparar, traçar analogias entre Cinema e Artes plásticas é, antes, fundamental entendermos que quando falamos da maneira como um pintor utiliza a luz nos seus quadros ou de como a luz se apresenta como um elemento marcante em certo tipo de Cinema (tal como ficou conhecido o cinema expressionista alemão), estamos falando de coisas completamente diferentes.
Pode nos parecer bastante correto dizer que o expressionismo alemão é “um movimento de Cinema de caráter altamente pictórico” ou de quem em Fausto, Murnau “concebe uma atmosfera mística a partir dos contrastes de iluminação, que remetem a pintura de Rembrandt”. Esse tipo de comparação pode nos parecer, a princípio, bastante ilustrativa e esclarecedora. Podemos, por exemplo, inferir que Murnau utilizou, em seu filme, fortes contrastes de luz e sombra que se assemelhavam ao que fazia Rembrandt ao utilizar muito bem a técnica do chiaroscuro.
No entanto, quando fazemos esse tipo de comparação, automaticamente, esquecemos de uma coisa muito importante: de que Cinema e Artes plásticas são diferentes em sua essência e que, portanto, compará-los só pode funcionar a nível metafórico. E metáforas são extremamente válidas, mas não devem ser confundidas como denotadoras de um sentido real. Dizer que os filmes expressionistas são “como as telas de Caravaggio” é muito menos uma comparação do que uma metáfora.
Poderíamos escrever tratados infindos sobre distinções entre pintura e Cinema, elas são tão óbvias quanto numerosas. Mas a proposta aqui é diferencia-los a um nível estrutural. Até para que possamos justificar o que foi dito anteriormente.
Se pudermos reduzir ao mínimo e ali onde está o Cinema com sua iluminação, atores, objetos de cena, narrativa, edição, fazer restar apenas uma- sem a qual não existiria nenhuma das outras- poderíamos dizer que estaríamos diante da natureza do Cinema. E aqui não vou me alongar mais: experiências inusitadas como colocar uma câmera registrando durante 4 horas um edifício nos poupa o trabalho de procurar muitos exemplos na história do Cinema. E mesmo depois de uma valorização excessiva da montagem, já nos provou Hitchcock que se faz Cinema sem cortes. Mas nunca ninguém fez Cinema sem luz.
Se realizarmos o mesmo raciocínio em relação à pintura, nosso último sobrevivente é a cor.
E aqui chegamos a nosso primeiro ponto importante: No Cinema, a luz é um elemento estrutural, de caráter ontológico. Enquanto que na pintura é apenas um efeito, uma representação, tal como é o efeito da cor no Cinema. Portanto, toda vez que falamos de luz em um quadro, estamos falando de um caráter ilusório que, no entanto, é recalcado no enunciado. Na verdade, estamos falando da cor e de como essa ou aquela cor produz tal ou qual efeito de luz.

“A luz, no Cinema, está sempre ali, e até mesmo duplamente ali, já que a luz do projetor- a luz de depois do filme- serve para mostrar como a luz caía sobre as coisas filmadas- a luz de antes do filme... Só que o que é primordial em pintura não é evidentemente a luz, e sim a cor”.
É na relação com a luz que se percebe melhor o paradoxo plástico do Cinema: vítima de sua tecnicidade, ele apreende bem demais a luz, sem trabalho, para saber, de saída, trabalha-la. Fazer da luz um material plástico é, em pintura, uma necessidade”. (O OLHO INTERMINÁVEL- CINEMA E PINTURA, JACQUES AUMONT)

É por esse diferente caráter da luz na pintura e no Cinema que essa exercerá funções de representação, em geral, diferentes em ambas. Jacuqes Aumont, em seu livro já citado, aponta para os papéis simbólico, atmosférico e dramático da luz, associando, fundamentalmente, a pintura a esse primeiro e o Cinema a esse último.
No primeiro caso, “liga a presença da luz no quadro a um sentido que, no caso da luz, toca sempre o sobrenatural, o sobre-humano, a graça e a transcendência”. Seja representado o Divino, seja representando a Razão, a luz está, na pintura, associada a uma função simbólica que muito deve dizer a respeito do caráter inexorável que a luz assume ali de idéia, de representação.

No Cinema, essa função é transferida. A luz se desloca, ganha outro lugar. Deixa de ser mensagem para ser meio, deixa de ser fim para ser ferramenta. E como ferramenta, irá se alojar numa história da técnica. A Natureza fotográfica do Cinema inscreve a luz numa história da técnica, mas não lhe concede uma história do puro simbolismo. O cineasta não tem como escapar à luz. Restará a ele, única e simplesmente, disfarçá-la.

Torna-la real, natural, justificada, parte significante do universo que constrói. E como fazer isso da melhor maneira? É aí que entra a função dramática da luz no Cinema. Não podendo escapar a ela, deve aceitá-la. Mas com a descrição de quem está em paz com a sua própria natureza. E nisso Murnau foi um mestre. O cineasta alemão, certamente, entendia muito bem as leis do mundo da pintura (formou-se em história da Arte), mas era muito mais um cineasta-cinematográfico do que um cineasta-pictórico, alcunha que muitas vezes recebeu. Caravaggio não chegou a conhecer a fotografia e o Cinema, mas, sem saber, era um pintor cinematográfico.

É necessário apresentar melhor nossos dois homens. Para, posteriormente, falarmos de como a luz exerceu caráter dramático na obra de ambos. Vamos reconhecer na obra de Caravaggio uma função, predominantemente, dramática ao invés de simbólica, através da utilização da técnica do chiaroscuro, da qual foi, certamente, um dos maiores representantes. Em Murnau, veremos a utilização simbólica da luz em Fausto, mas com a consciência devida de que aquilo no Cinema só poderia existir para tratar de um tema místico.


3. MURNAU

F.W Murnau é marcado pelo kammerspiel, cinema realista. Realismo, porém, que se caracteriza pelas ousadias narrativas e visuais, em virtude do privilégio atribuído ao movimento, seja dos elementos plásticos dentro do quadro, seja da câmera em si.

Como dissemos, o Cinema tem todo um interesse em disfarçar a luz. Ela deve parecer real, verossímil. Geralmente, não olhamos para um filme e pensamos: “Nossa, que filme realista”. Mas podemos, tranqüilamente, falar isso de uma pintura. Um filme de ficção pode nos parecer mentiroso, mas não irreal. Um quadro de Picasso pode nos parecer bonito, verdadeiro, mas nunca diríamos que ele parece real. Isso ocorre devido à natureza fotográfica do Cinema, da qual já falamos.

Quando essa preocupação com o disfarce e a naturalização da luz desaparece, o filme deve parecer para nós “menos cinematográfico”. Podemos dizer que um filme é muito teatral, musical ou pictórico. Ele será “teatral” se fizer um trabalho pouco natural com os atores, “musical” se tiver um ritmo escandalosamente apreensível. Essas metáforas- e não devemos cansar de acusar sempre esse caráter- vêm de um processo de inscrição do Cinema na história, a ter que conviver com as outras artes já consolidadas.

Assim, o expressionismo ganhou um certo sentido de pictórico, sintoma dessas batalhas travadas dentro da ordem do discurso, como diria Foucault. E uma vez reconhecido como sentido, e apenas como sentido, devemos, agora, tentar entendê-lo. Não poderemos nos ressentir de textos que se esforcem na mais detalhada comparação entre um quadro e um filme expressionista. Mas o que queremos dizer quando chamamos O Gabinete do Doutor Caligari de um “filme pictórico”?

Precisamente, o que viemos dizendo até aqui. Esse filme, narrado sobre o ponto de vista de um louco, além de atores com maquiagem e atuações pesadas e cenários- isso seria pouco para considerar um filme “pictórico”, o tornaria no máximo “teatral”- trabalha a luz de uma forma específica. Não há no trabalho com a luz qualquer esforço de naturalização, de fazer parecer real. Mas sim o contrário. O que importa aqui é , tornando-se, simultaneamente, forma e conteúdo, meio e mensagem. A luz assume sua função simbólica. A função primeira da pintura.

O que acontece no Cinema de Murnau, no entanto, é algo completamente diferente. Murnau é, muito mais, um cineasta do realismo do que do expressionismo. E soube muito bem usar em seus filmes a função dramática da luz. Ainda que seja compreensível seu título de cineasta-pintor.

Em A Última gargalhada, trabalhando em conjunto com o fotógrafo Karl Freund explora o quadro, equacionando genialmente as posições da câmera e dos objetos de cena. É notável sua preocupação com a composição das linhas do quadro, como podemos observar nas cenas que se passam dentro do Hotel Atlantic, cenário marcado pela simetria e o glamour que caracterizam uma concepção de metrópole, também explorada em outros filmes do diretor. (ver figura 02).

Mas não devemos perder de vista a oposição entre a função simbólica e a função dramática da luz. É ela que nos permite a mais clara distinção entre o que é a luz em um quadro ou em um filme, bem como o sentido pictórico ou cinematográfico que pode assumir um meio artístico ou outro.

Se o objetivo desse trabalho é realizar um paralelo entre as obras do pintor Caravaggio e os filmes de Murnau, feitas já as devidas ressalvas quanto ao que significa atribuir a um meio artístico terminologias de outro, deveríamos levantar duas hipóteses: ou é Murnau um cineasta “pictórico” ou é Caravaggio um pintor “cinematográfico”

Vimos que o realismo no Cinema está relacionado, primeiramente, a sua natureza fotográfica e, em segundo, e como conseqüência disso, por todo o esforço que empenha em neutralizar e disfarçar a luz na cena. Trata-se de um trabalho de “verossimilização” que persegue toda a história do Cinema e a maneira como esse meio artístico foi, ao longo do tempo, encontrando a sua linguagem própria.

Podemos localizar em Murnau toda a preocupação e eficiência em realizar essa tarefa. Não há luz em seus filmes que não seja muito bem justificada e integrada à cena. Seja por um abajur glamuroso que serve para compor o cenário pomposo do hotel, ou pela simples luz de um cigarro que confere um certo ar blasé a um dos funcionários do hotel. O que importa é a realidade específica do filme e não uma realidade qualquer. Não há luz ali que não agregue significado ao universo que o cineasta se propõe a construir.

Em a Última Gargalhada, são infinitos os exemplos que podemos citar. Há uma evolução da luz no filme, inicialmente muito mais “iluminado”, quando o protagonista ainda se sente importante na função de porteiro do hotel. A fotografia explora a profundidade de campo através das luzes que compõem a cidade à noite (ver figura 03). O ambiente é imponente, sedutor e o trabalho com a luz, criando diversos planos (o guarda do hotel no primeiro plano, o carismático protagonista no segundo, os prédios enormes que extrapolam o quadro, no último), criam o sentido pretendido de complexidade da metrópole.

À medida em que a narrativa evolui e o protagonista é demitido, recebendo o função de cuidar do banheiro do hotel, as luzes caem. Há a cena formidável dele adentrando a porta que dá para o banheiro para onde fora designado. A câmera fixa enquadra a porta, toda escura, com a governanta à esquerda do quadro, e registra o homem até ele desaparecer por completo. (ver figura 01) As toalhas que ele carrega fazem o devido contraste com o fundo negro do ambiente onde não há nenhum glamour. A função dramática da luz é usada em toda a sua potencialidade.

Em Fausto a função simbólica está presente. O filme começa e a luz é evidente. No entanto, a completa e intencional despreocupação com a neutralização da luz está associada a uma igual preocupação em situar a narrativa num terreno místico. Vemos criaturas estranhas, de aparência não-humana correndo em cima de cavalos em meio a uma densa fumaça e feixes de luz.

A luz, e seu negativo, a sombra, exercem uma espécie de função de objeto de cena. Parece, realmente, que estamos habitando o terreno do pictórico. Daí ser genial as luzes em forma de raio que invadem o quadro ao longo da seqüência, maneira pela qual aparece representada em longo período da história da Arte. (ver figura 04)

Em seguida temos um plano, contraplano das figuras místicas de um anjo e um demônio (ver figuras 05 e 06), respectivamente representadas por um jogo óbvio de luz e sombra. E aqui é necessário esvaziar essa palavra de qualquer carga pejorativa. Ela é óbvia porque é simbólica e integra o plano do transcendente. E todo símbolo místico deve ter sua carga de obviedade. Seria difícil compreender um anjo vestido de preto e envolto em sombras.

Murnau parece saber muito bem que só pode tematizar a luz dentro do filme, se for para representar algo que escapa o plano da matéria e da realidade humana. Caso contrário, ele transgrediria as leis da natureza do Cinema e revelaria o seu artifício. O que há de pictórico em Murnau não há de ser mais do que o pleno domínio das leis de dois universos diferentes que ele sabe perfeitamente não fazer confundir.



4. CARAVAGGIO

É bastante curioso que nos livros de história da Arte, as páginas dedicadas a esse pintor o abordem sempre a partir de sua personalidade e seus dizeres. Ficou famosa a frase em que disse no meio de um tribunal: “Não sou um pintor valentão, como me chamam, mas sim um pintor valente, isto é: que sabe pintar bem e imitar bem as coisas naturais”.

Curioso, num primeiro momento, mas inteiramente compreensível, logo mais adiante, quando observamos quadros de pintores contemporâneos seus. Só a explicação uma personalidade única que evocasse a idéia de gênio poderia dar uma satisfação minimamente satisfatória para a História do porquê as obras de Caravaggio eram tão imensamente diferentes de toda a demais produção artística de sua época.

No final dos século XVI, pintavam os maneiristas. “Essa corrente, caracterizada pela concentração na maneira, procurava efeitos bizarros que já apontavam para a arte moderna, como o alongamento das figuras humanas e os pontos de vista inusitados”. (ver figura 13).

O estilo naturalista de Caravaggio estava no pólo diametralmente oposto ao que acabamos de descrever. Seu modelo era a humanidade vulgar das feiras e tavernas: vendedores de frutas, músicos ambulantes, ciganos e prostitutas. Aproximava-se de Leonardo da Vinci, para quem a pintura era uma forma de especular a natureza.


Assim como em Murnau, é o trabalho com a luz que irá se destacar na obra de Caravaggio. O efeito de luz produzido nos seus quadros, no entanto, não nos deve parecer simplesmente belo, mas também gritante. Em todo o sentido do termo. A luz inunda a cena e antecipa um século o chiaroscuro de Rembrandt. (ver figura 10)

Suas telas deveriam ser usadas para curar a síndrome dos que, sem nenhum cuidado, quiseram forçar uma aproximação entre Cinema e Pintura. Elas mostram, da maneira mais clara possível, como o realismo na pintura nada tem a ver com uma necessidade de justificar as luzes- de fazê-la integrar a cena do modo mais natural possível- tão necessária ao Cinema.

Ao contrário, quanto mais descontextualizada, quanto mais se torna única apenas no contraste com o fundo negro, que parece elevar a narrativa a um espaço atemporal, maior realidade ganham as figuras ali representadas. Se pararmos para contemplar Davi e Golias (figura 07) ou A flagelação (figura 09) haveremos de ficar perplexos diante do realismo obtido.

Ou a luz que se esbate sobre as fisionomias para modelá-las corporeamente e envolvê-las numa aura imaterial, como em Vocação de São Mateus. (ver figura 08) A janela, situada na parede e fonte de luz nenhuma, parece uma ironia. Tudo se passa num botequim, em meio a um prosaico jogo de cartas. A luz parece servir apenas para mostrar o que interessa: as variedades das fisionomias, a indiferença do jovem que permanece absorto no jogo de cartas.

Poderíamos ver, até então, na luz, uma função simbólica quase que exclusiva. Suas fontes estão representadas e emanam de figuras de ordem sobrenatural e divina tais como anjos, Jesus Cristo e Maria. Ou da própria natureza, sob uma forma mais difusa. Mesmo quando a religião perde importância e a luz do sol passa, simplesmente, a entrar pela janela de uma casa qualquer, como nas conhecidas telas de Vermeer (ver figuras 11 e 12)- e isso já depois de Caravaggio- podemos verificar uma preocupação com a representação dessas fontes luminosas.

Se há algo de interessante nos quadros de Caravaggio é que essa luz não vem nem da natureza nem dessas figuras divinas. Aliás, muitas vezes elas não estão nem representadas, ou quando estão, apresentam a mais ordinária aparência humana.

Não temos revelada a fonte da luz. E disso decorre um deslocamento de sua função. Deixa de ser, predominantemente, simbólica para ser, fundamentalmente, dramática. Tal como no Cinema.

Caravaggio é um pintor cinematográfico. E os quase três séculos que separam sua morte do nascimento do Cinema não permitirão a ninguém dizer que, por mais correto que isso pareça, não passa de uma metáfora.




5. BIBLIOGRAFIA


AUMONT, J. O Olho interminável [Cinema e Pintura], Cosac & Naify, 1998

GOMBRICH, E.H A história da arte, LTC

FOCAULT, M. A ordem do discurso

EISNER, L. A tela demoníaca, Paz e Terra

CHARNEY, L. e SCHWARTZ, V. (orgs) O Cinema e a invenção da vida moderna, Cosac & Naify


6. FILMOGRAFIA


A Última Gargalhada (Der Letzte Mann), F.W Murnau,1924, Alemanha

Fausto (Faust - Eine Deutsche Volkssage), 1926, Alemanha

O Gabinete do doutor Caligari (Kabinett des Dr. Cligari), Wiene, Robert, 1919, Alemanha
[1] Um elemento artístico, o chiaroscuro (palavra italiana para "luz e sombra" ou, mais literalmente, «claro-escuro») é definido como um forte contraste entre luz e sombra. Também chamado de perspectiva tonal. Essa técnica foi criada por Leonardo da Vinci, pintor renascentista do século XV.

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