O tempo de cada um

(O Céu de Suely, Karim Aïnouz, 2006)
O novo filme de de Karim Aïnouz é um filme complexo sobre o tempo e o amor. Mais precisamente, sobre a relação entre eles e os desencontros a que um submete o outro. O amor submetido ao tempo é uma idéia relativamente fácil de se compreender, mas o contrário é algo extremamente complexo, e é o partilhar dessa sensação que O Céu de Suely nos traz de uma maneira brilhante.
O filme começa com uma linda seqüência mostrando um casal dançando abraçado sobre um céu aberto. A cena, filmada em super-8, localiza aquele tempo no passado, num tempo que já não é mais. Uma voz em off confirma essa sensação, acrescentando a ela uma certa melancolia.
Logo em seguida, somos transportados para outro tempo. De início, não sabemos, ao certo, se um futuro ou um passado em relação ao anterior. Mas a verdade é que não importa, porque o tempo da personagem que acompanharemos dali pra frente é aquele que vimos ficar pra trás.
Desde o início sabemos que Mateus não irá ao encontro de Hermila, e a sensação que se instala desde sempre na atmosfera de O Céu de Suely é de uma profunda melancolia. Sabemos que Mateus não virá, que o tempo não volta e que o futuro não será como se gostaria.
Surge então a necessidade de se solucionar esses vazios. O vazio deixado pelo amor, pela quebra da ilusão, pela ruptura do tempo. A personagem começa a buscar a supressão dessas ausências, através da fuga, da substituição. Vemos Hermila dançando nos bailes da cidade, conquistando outros homens, cuidando do filho, conversando e fumando com as amigas. Há uma melancolia profunda em cada um desses movimentos, uma placidez, uma atmosfera densa como a sensação do calor que é construída na narrativa. (A cena em que Hermila está encostada com a amiga passando gelo pelo corpo chega a ser paralisante pela quantidade de sensações que mobiliza: o sufocamento da tristeza e do calor, uma certa insinuação de erotismo, um desejo que não se sabe da onde e para onde vem e vai).
Vemos a personagem dominada por uma dor imensa. Perpassa o filme uma sensação de absoluta clausura. Além das festas, há a possibilidade da fuga pela viagem para o “lugar mais longe que tiver”, o apelo das amigas para a diversão, João, que se apaixona por Hermila. Mas vemos que nenhum desses artifícios a resgata.
Surge o argumento central do filme: a idéia de se rifar. Há mais do que uma necessidade de fuga do passado, das lembranças; impõe-se um desejo de fuga do corpo. Na verdade, um desejo de se descobrir do que fugir: se do passado, do presente, de Mateus, ou de si própria.
Hermila transforma o seu entorno: mobiliza os homens a sua volta, que a desejam, a agridem, se apaixonam por ela; mobiliza as mulheres, que a admiram, invejam, repreendem (no caso da vó quando descobre a história da rifa). Mas Hermila, ao contrário, não é afetada por nenhum desses agentes. Há algo que a agride que é de uma violência extrema, mas que não está dentro de um universo visível. Algo que está dentro da personagem e que contamina tudo o que ela (vemos). Vemos através do olhar de Hermila.
O Céu de Suely é um filme sobre a brutalidade de se viver um tempo alienado, um tempo subjetivo descolado do tempo das coisas; de estar imerso num tempo interior diferente do tempo em que os fatos se passam.
No final, há algo de extremamente pungente. Não se vê no amor a possibilidade de colar esses dois tempos. Na cena final do filme, quando vemos Hermila indo embora no ônibus, vemos também a moto que se aproxima e que sabemos ser de João, mas que, por um instante pensamos poder ser de Mateus. Esperamos então a redenção, o encontro entre os dois tempos (o tempo em suspensão do super-8 e o do restante das imagens; o tempo do mundo e o da personagem). Mas logo vemos o capacete se abrir e vemos que é João, correndo atrás do amor que nunca consegue ter.
Se há algo de profundamente triste do filme de Karin é que o amor não serve para unir os tempos, para sintonizá-los. Mas ele é, sim, é parte do desencontro.
E então Hermila segue no ônibus sozinha, rumo a um futuro no qual talvez possa encontrar e atualizar seu tempo. Enquanto que João tem de voltar porque não pode dividir um tempo com Hermila. Ele volta para o passado enquanto ela vai para o futuro. E enquanto Mateus continua em SP, num presente ausente em relação à Hermila.
No final do filme, os três terminam em lugares/espaços deferentes. Mas há a esperança de um tempo presente. Uma esperança de Hermila encontrar o seu presente. Uma esperança que, no entanto, não se encontra no amor. Mas numa busca pessoal que aponta para o futuro.

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