A Tropa na fronteira: Tropa de Elite e as novas fronteiras entre o real e a ficção

(Tropa de Elite, José Padilha, Brasil, 2007)

Talvez seja bastante sintomática a discussão que se impôs sobre o tom documental que haveria em Tropa de Elite.
Um bom tempo se gastou debatendo se um recurso, que permeia todo o filme, como a câmera na mão estaria a serviço de se construir um efeito de realidade ou de simplesmente imprimir ao filme tensão, o que, por sua vez, potencializaria seu caráter dramático e, por fim, de ficção. Mais uma vez, se coloca ficção e realidade em lados opostos. Continua-se a disputar o real. E o filme capitula essa disputa.
O diálogo com o documentário em Tropa de Elite é nítido e confesso. Longe, porém, de isso aplacar seu caráter de ficção, o que pode ser provado, principalmente, pela presença carismática de seu personagem principal, o Capitão Nascimento, interpretado pelo ator Wagner Moura. O filme é, intencionalmente, construído em cima dessa figura.
Não à toa, quem assiste aos extras do filme pode saber, mediante os depoimentos do diretor e montador, que inicialmente Tropa fora feito sob o ponto de vista de Matias, o policial negro interpretado por André Ramiro (que, na verdade, não é ator e nunca havia interpretado qualquer papel antes). O roteiro do filme foi assim concebido. No entanto, depois do material bruto ter sido capturado, foi-se decidido que isso seria modificado na montagem do filme e que a história passaria a ser narrada pelo personagem de Moura.
Todo o cuidado que se tem, desde a escolha do ator à minuciosa construção do personagem Capitão Nascimento, não atende, simplesmente, a uma necessidade de se documentar um ponto de vista (o do BOPE, no caso) ou “uma parte da realidade”. Um filme, e isso independe das boas ou más “intenções” de seus criadores, tem sempre “consciência” do seu caráter de ficção. Wagner Moura não é uma escolha inocente, no sentido em que sua presença direciona o discurso do filme para certas possibilidades de leitura, ao passo que exclui outras.
Se Capitão Nascimento fosse interpretado por André Ramiro, o ator negro que interpreta o personagem Matias, Tropa de Elite seria outro filme. Pode ser que Nascimento não virasse herói, ou que o personagem saísse menos ambíguo, despertasse mais raiva pelas suas truculências, ou mais compaixão pelos seus problemas psicológicos. Pode ser que, ao invés de fascista, José Padilha fosse acusado de racista.
O fato é que um filme, ou as possibilidades de sentidos que podem nele ser lidas, é construído a partir de uma série de escolhas, de equipes de profissionais que nele imprimem sentidos muito a despeito de suas “intenções”. Desde as marcações do roteiro, locações escolhidas, tipo de iluminação, movimentos de câmera e escolha do elenco, aos cortes, edição de som, trilha sonora, e outros processos de finalização.
Sem contar que todas essas questões ligadas a isso que chamamos de “linguagem cinematográfica” estão, ainda, submetidas às complexas relações de sentidos que existem dentro de uma sociedade que é dotada de memória histórica, social, cultural. Tropa de Elite não está no DVD pirata vendido na Uruguaiana, ou nas salas de cinema do Estação, mas antes num país no qual a pirataria existe, no qual Wagner Moura é estrela, simultaneamente, de cinema e de telenovela da Globo, e assim por diante.
O “fenômeno Tropa de Elite” não pode ser analisado sem que, no mínimo, esses dois elementos, linguagem cinematográfica e memória social, entrem na equação. Mas não em lados opostos- o primeiro indo em direção ao segundo numa relação simplificada filme/ espectador- mas sim desse modo de se relacionar “contemporâneo”, com o qual já começamos a nos acostumar, que age de forma interdependente, porosa e complexa. O pecado grave que se tornou falar de “autor” ou “intenção”.
Pecado grave, mas inevitável. Quando se toca na ferida é preciso apontar criminosos. E então José Padilha é fascista. Tropa de Elite “quer” investigar uma parte do “problema” que ainda não havia sido colocado em pauta: o papel que desempenha o consumidor da droga na cadeia do tráfico, a visão que a polícia tem do “problema”. Ao invés de, simplesmente, uma visão sobre a polícia, Tropa de Elite é um filme sobre a própria visão da polícia. Ao invés de filmar o jovem da favela coloca-se a câmera nas suas mãos. Talvez esteja nisso o que Tropa de Elite tem de mais “documental”.
Tropa de Elite é, em grande medida, um exercício de se dar uma voz. Ponto pacífico. Mas e se essa voz não é a do jovem invisibilizado pela sociedade que vê no “problema” a sua “solução”? Ou da mulher esquizofrênica que vive no meio do lixo, no meio de tudo que todo mundo quer ignorar? É tão fundamental quanto nobre isso, alguém que nos lembre, de alguma maneira, dos presídios e prostíbulos, das putas, travestis e doentes mentais. Alguém que nos lembre que, todos os dias, quem não é bonito, branco, magro, rico e cem por cento saudável sofre, e sofre muito.
Mas e se essa voz não for propriamente a de um invisível? Se essa voz não for a da vítima, mas a do algoz? Se essa voz não for a dos judeus, mas a de Hitler? Qual é o risco disso? O de descobrir que Hitler também é um pouco humano, também é um pouco vítima, de que o policial do BOPE também tem suas ambigüidades, maldades e fraquezas, e que, inclusive, você pode se identificar com elas. É quase tudo, ou tudo, uma questão de contextualização. E isso, sim, é muito difícil de aceitar.
E então Tropa de Elite poderia ser lido, simplesmente, como um filme que revela o desejo de uma sociedade. Talvez sua leitura como um filme fascista mostre um pouco isso. Porque quando o acusam de fascista o fazem apontando para a maneira como ele opõe BOPE e PM. Alega-se que sua intenção é mostrar a PM como uma instituição marcada pela completa degradação dos valores cívicos, ao passo que o BOPE seria colocado em um espaço puro onde não haveria corrupção.
Mas então deveríamos nos perguntar: Quem é que está realizando esse julgamento? Quem está optando por dar ao BOPE esse lugar de nobreza? Afinal de contas, mostrar que eles torturam e matam, isso o filme faz. Um filme que mostra que alguém faz isso está dando, “por si só”, um posto de herói para esse alguém? Os jornais falaram das intenções do autor, mas esqueceram de falar das do espectador. E assim continua a sociedade, sempre na sua busca (fascista?) pelos criminosos.
É nesse ponto, principalmente, que Tropa de Elite se torna um filme interessante. Talvez não seja um filme com um olhar fascista, mas a voz que ele dá, isso sim é evidente, é para um ponto de vista fascista. Acontece que mostrar um ponto de vista é diferente de adotá-lo. E também é certo que no momento em que essa voz é dada, outras não são ouvidas, o que explica o tratamento estereotipado que os estudantes das classes média e alta recebem no filme.
Agora, isso sim, podemos dizer de Tropa de Elite que sua “intenção” não é dar voz ao estudante universitário da Zona Sul. E isso irritou terrivelmente às classes médias, porque afinal de contas é chato ouvir “você é burro e idiota, porque seu pai tem grana e você estuda na PUC”. Mas também deve ser chato escutar, todos os dias, “você é um corrupto, filho da puta, que só quer se dar bem”, o discurso que a sociedade tem sempre na ponta da língua para falar da polícia.
Aí uma voz diz: “nesse sistema tem os corruptos, mas tem também os idiotas”, e nunca ninguém tinha pensado nos idiotas. Ainda que, claro, eles não sejam só isso. “Ele é corrupto, mas ganha mal”. “Ele é um alienado e passa o dia inteiro fumando maconha, mas a vida dele é vazia”. O exercício, que nunca se deveria perder de vista, de olhar o outro lado da moeda.
Se Tropa de Elite for lido como um filme que mostra o ponto de vista que um policial que é capitão do BOPE tem sobre o “sistema”, então a sociedade ganha. Porque precisamos, sim, ouvir esse ponto de vista para entendermos o “problema”. Agora, é claro, precisamos também ouvir o ponto de vista do estudante consumidor, o do traficante, o do político, o dos representantes das empresas fabricantes de armas que estão lá na Suíça e, provavelmente, muitos outros ainda que compõem o tal do “sistema”.
Tropa de Elite tem um efeito colateral de mostrar que o “sistema” é um somatório desigual de pontos de vista, que se impõem uns sobre os outros, ora com a força do dinheiro, ora com a força das armas.
O filme desestabiliza o imaginário social, que não fazia mais do que reforçar uma equação quase indiscutida até então: polícia corrupta / traficante meio vítima, meio algoz/ elite vítima ou hipócrita. Sugere uma polícia corrupta sim, mas uma parte dela que não é exatamente corrupta, mas fascista, que é capaz de legitimar a tortura sob o argumento do bem-estar social (o BOPE), e uma elite idiota.
E ser idiota é bem diferente de ser vítima, simplesmente, como sugerem os meios de comunicação da informação. Uma caracterização que há algum tempo ajuda a legitimar o discurso e as políticas de segurança pública na cidade. Da mesma maneira, ser idiota é diferente também do imaginário sugerido pelas críticas de esquerda que caracterizaram uma elite vilã e hipócrita. O vilão, de certa forma, sabe que o que está fazendo não é “certo”. Mas faz mesmo assim. Enquanto que o idiota simplesmente não sabe o que está fazendo.
Em Quanto vale ou é por quilo, os empresários ricos que tem suas ONGs e lucram fazendo marketing social sabem muito bem que sua ética de solidariedade é apenas uma fachada. Mas simplesmente desdenham isso, são hipócritas. Enquanto que o estudante rico que tem uma ONG na favela em Tropa de Elite “acredita” no trabalho social que está fazendo. Quem não acredita é o telespectador. O que, automaticamente, os transforma ou em ingênuos (no caso da personagem Maria) ou em idiotas, no caso dos demais.
Em Tropa de Elite o estudante rico é um alienado que resume sua “consciência social” a ter uma ONG na favela enquanto confraterniza com traficantes. Enche a boca para falar mal da polícia corrupta enquanto compra seu lote cotidiano de maconha para revender na faculdade e curtir nas festinhas da Zona Sul. Lê as teorias supostamente “críticas” de Foucault e Deleuze (fumando um baseado, é claro), mas é incapaz sequer de reconhecer os graves problemas sociais da cidade em que vive, ignorando ainda sua própria função na cadeia do tráfico, o papel que cumpre no “sistema”.
Já a polícia militar, diferente do jovem consumidor das elites, tem um certo conhecimento desse “sistema”. No entanto, mantém com ele uma relação de promiscuidade e permanente negociação, usando do seu funcionamento para extrair benefícios próprios. Pega “arrego” com traficante, faz acordo com político, sem contar com os pequenos “acertos” do dia-a-dia com o cidadão comum. Basicamente, encarna o individualismo do “salve-se quem puder” e a completa falência de um projeto de sociedade carioca.
Por fim, há quem conheça muito bem esse “sistema”, e com uma clareza e distanciamento tão profundos que não se deixa contaminar por ele. Segundo esse olhar, polícia e sociedade mantêm relações promíscuas, o Rio de Janeiro está em guerra porque a polícia militar não reprime o tráfico como deveria, porque dá “arrego” para traficante e não autua devidamente o usuário rico da Zona Sul. A solução não é negociar com o crime, mas sim acabar com ele.
Existe uma missão. E “missão dada é missão cumprida”. Pelo BOPE.
E assim, o “sistema” se perpetua. Conhecendo-o ou não, se faz parte dele, não há como se estar “fora” do “sistema”. O que se faz, então? Como se mantêm a sociedade longe do perigo da violência e das armas? Todas as grades não foram suficientes para dar conta de todo o medo, para fechar todas as brechas. Então nos resta o extermínio (?). Acabamos com os traficantes, acabamos com os policiais corruptos, acabamos com os jovens que compram as drogas e pronto, dessa forma teremos um pouco de paz.
Tropa de Elite tem algo de assustador. Porque revela uma sociedade que, sem perceber, adotou a ideologia do extermínio, que se perdeu no meio do “sistema”, seja por não saber quem se é dentro dele ou porque só vê a si próprio dentro dele. O Capitão Nascimento herói revele, talvez, não exatamente uma ideologia fascista, mas uma ideologia do auto-extermínio, o desejo que nasce dentro de uma sociedade de acabar consigo mesma.
Pode ser interessante observar que num país marcado pela total indiferença política, pelo total esquecimento do passado, no qual Jarbas Passarinho dá, sem nenhum pudor, um depoimento dizendo que “é preciso virar a página, temos que esquecer os nossos mortos”, no qual a polícia massacra covardemente centenas de prisioneiros no Carandiru e no dia seguinte implode-se o presídio para que ninguém lembre do acontecido, que um filme como Tropa de Elite torne-se o filme no ano.
Interessante que ele atravesse de forma tão oblíqua o sistema de distribuição brasileiro de filmes, que ele revele, de uma forma tão sutil quanto escandalosa, o mesmo caráter excludente do processo de produção, distribuição e exibição de filmes existente na sociedade que se propõe retratar.
Interessante que seu projeto inicial, seu método de realização, sua urgência em falar de algo que não pode mais ser ignorado revelem um caráter extremamente documental. Mas que a maneira que encontrou para chegar à sociedade tenha sido a de um discurso ficcional.
Interessante também que, dessa maneira, revele uma sociedade na qual as fronteiras entre o real e a ficção estão cada vez mais nebulosas. Uma sociedade que, sem perceber, está chamando de realidade só uma parte dela mesma. Uma sociedade que ainda não cansou de colocar grades para separar ela dela mesma, para dividir, sempre, tudo em dois.

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